13 de maio de 2009, onze e meia da noite, plataforma de ônibus no Largo de Osasco, Grande São Paulo. No ponto de ônibus dos bairros Jardim Santa Fé, Munhoz Junior e Pirituba, apenas três pessoas, além deste cronista, esperam o ônibus; duas senhora sentadas e uma senhora em pé, ao meu lado. Todos estávamos em silêncio. O ônibus que eu tomara até o trem - antes de chegar ali -, havia se atrasado, o que me deixou no limite, ao ponto de pegar o último ou penúltimo ônibus (em Osasco) para casa.
A senhora em pé ao meu lado, olhava um cachorro que se coçava, deitado ao pé de uma pilastra. Era uma senhora de cinqüenta e poucos anos, óculos de aro de massa preta, cabelos grisalhos soltos, brincos grandes, de blusa e saia longa, com uma sacola plástica à mão; em tudo simples, sem qualquer luxo.
De repente, do silêncio tedioso da nossa espera do ônibus, a senhora (que ainda observava interessada o cachorro), dirigindo-se a mim, disse:
- Pobre cãozinho... coitado, deve estar com fome...
Como eu nada disesse, a senhora emendou:
- Pior que a essa hora está tudo fechado... se ao menos tivesse onde comprar um pouco de ração para dar a ele...
Eu estava cansado, olhos ardendo do sono atrasado (não sou tão resistente quanto as pessoas com as quais converso e vejo que se contentam em dormir três ou quatro horas por noite), ansioso por chegar em casa. Quando ouvi aquela senhora, àquela hora, cogitar em comprar ração para um vira-latas, fiquei pensando se diria algo, se desdobraria aquilo em questões, se pronunciaria umas frases de efeito moral... mas, por preguiça, desencanto,conivência ou desânimo, continuei calado. Até que ela, sempre olhando o cão, disse novamente:
- Sabe que eu tenho mais pena de um cachorro assim, abandonado na rua, do que de uma pessoa? Ao menos uma pessoa, quando chega a essa ponto, é porque deixou chegar... agora o bichinho, coitado, não sabe de nada, não tem culpa. A pessoa, quando chega a viver na rua, acostuma, não sai mais...
Como um "presunto" (o cadáver) sobre o qual são desfechados golpes sucessivos, mantive-me apenas olhando para a senhora, em busca de assentimento às suas supostas razões (eu diria provocações). Minha recusa/indiferença em estabelecer vínculos de comunicação não impediram que a senhora continuasse olhando o cão, que, de repente, se voltou para ela.
- Olhe só... ele tem até olhos claros...
Olhei a cara do cachorro. Era um cachorro magro e feio; pêlo descuidado e com aparente sarna, pois coçava-se ininterruptamente.
O ônibus demorava. Outras pessoas (não muitas) chegaram ao ponto de ônibus; a senhora se mantivera ao meu lado. De repente, sem que eu esperasse (e parece algo fantástico que isso tenha ocorrido), logo após um dos meus inúmeros bocejos, apenas vi quando de entre as pessoas surgiu, caminhando oscilante, um homem negro, de barbas e cabelos volumosos, face marcada, todo sujo e maltrapilho, possivelmente um morador de rua. As pessoas abriam caminho para ele passar; como ele apontar em nossa direção, a senhora esquivou-se, com olhar ríspido; olhou-me e acompanhou com os olhos o homem que passava.
O ônibus chegou. Embarquei. Não era o ônibus da senhora; no ponto de ônibus, só (todos os outros embarcaram), ela olhava novamente o cachorro vira-latas, ao pé da pilastra.
Saindo dali, o ônibus contornou e passou sob uma ponte onde existe uma reprodução grande de Dom Quixote, Sancho Pança e um moinho (cena que contemplo todas as noites, quando retorno). Segui pensando sobre a preferência (e a piedade cristã) daquela senhora pelos animais, em detrimento dos humanos. O ônibus percorria uma extensa e curvilínea ponte sobre o braço morto do Tietê. Na ponte paralela, pude ver dois carros de polícia e uma ambulância parados, além de dois carros parcialment destroçados; o trânsito parcialmente desviado e feridos sendo atendidos no asfalto, ao lado da ambulância. Prováveis "presuntos", como cães famintos, desprovidos de qualquer racionalidade ou pulsação humana que fosse além da forma corporal.
O ônibus seguiu pelos últimos minutos dessa controversa data 13 de maio. Segui tentando pensar, fragmentos misturados à reprodução de Dom Quixote.
Desci no ponto próximo de casa. Caminhei pela rua semi-escura e deserta, já sem movimento, com as chaves na mão. Abri o portão, entrei em casa. A televisão ligada, o ambiente calmo, as pessoas no sofá. No canto, Teleco (o gato ganhado por minha companheira, ao qual sugeri ironicamente esse nome, por alusão ao conto de Murilo Rubião) e Lara (a gata de nome italiano, herdada do nosso vizinho eremita, morto há meses) se dedicavam cada qual às suas fartas vasilhas de ração.
OBS.: para ouvir um trecho do conto Teleco, o coelhinho, de Murilo Rubião, acesse http://www.youtube.com/watch?v=H4dulfDRV70, publicado em 1965.
2 comentários:
Panapaná, você poderia começar uma campanha nas plagas de Osasco para adoção do Sancho e do Quixtote da praça... coitados!, dormindo ao relento, sem tavernas nem hospedarias que o recebam. Oh Dulcinéias do piratininga, onde estarão vós que não atendem estes subalternos e mui valorosos reclames?
A sugestão é muito boa, mas ando achando que não há ninguém interessado nos quixotes, ninguém que queira adotá-los. Só são vistos moinhos... quixotes estão relagados aos "paraísos" que existem debaixo das pontes. Dulcinéias então... só com os devidos conhaques. Caminhemos.
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