terça-feira, 12 de outubro de 2010

A dondocagem tem pena


Não adiantam os discursos moralistas e sentimentalistas – em nossa sociedade o fundo para se compreender as aberrações é, quase sempre, a propriedade privada. Dentro da lógica da crítica epidérmica já se disse, sob categorias ínsitas à propriedade privada, que “a propriedade é um roubo!”. Nossa renitente referência à disseminada mentalidade da dondocagem politicamente correta, antes de ser uma referência moralista, expressa o estágio atual da ideologia dissimulada, dentre outras vestes, sob a máscara da piedade liberal.
Recentemente, dia 16 de agosto último (cf. texto), em São Paulo, a loja Daslu (há pouco tempo pega em sonegação fiscal em importações) realizou um leilão entre celebridades e consumidores de luxo, cuja renda seria revertida para certa “Escola do Povo”, em que dondocas com má-consciência se dedicam a pretensos projetos de alfabetização no bairro de Paraisópolis, cidade de São Paulo. Que a Daslu – mesmo após os crimes e a rapidíssima prisão de sua dona – continue em operação (aliás, diga-se que, sob a mira da justiça, as atividades da loja declinaram ao ponto de se falar em falência) somente o fato de termos uma justiça de classe explicará; se a lei fosse mesmo aplicada sob os mesmos rigores com que se punem, por exemplo, os moradores de regiões pobres como Paraisópolis, certamente a loja já teria desaparecido. Mas, indo adiante, não seria de abespinhar que uma boutique de luxo, restrita a consumidoras de luxo (como ficou demonstrado no caso dos quatrocentos vestidos de Dona Lu Alckmin), se desse ao trabalho de realizar um leilão – cuja peça inicial seria um terno feito por famoso estilista para o presidente Lula, com lance mínimo de R$ 100 mil – para destinar recursos à alfabetização dos pobres de Paraisópolis?
Isto seria de pasmar se não estivéssemos em tempos que se fala em “ética empresarial” e em outras coisas semelhantemente fantasiosas, como “responsabilidade social”. Sim, mas mesmo assim, será que a Daslu – em tempos de vacas magras, quando se fala até em falência – se daria ao trabalho de fazer um leilão apenas para parecer solidária, preocupada com os problemas sociais? Seria muita ingenuidade acreditar em semelhante hipótese.
Dissemos que o terno do presidente foi posto em leilão pela bagatela de R$ 100 mil. Não demorou para que o maior concentrador de renda do Brasil, Eike Batista, arrematasse o terno por meio milhão de reais.
Durante exibição de um vídeo sobre Paraisópolis, porém, o interesse pelos moradores em prol da alfabetização de quem a renda seria revertida, ficou evidente – a dondocagem conversava à solta sobre suas reais preocupações, o relógio do Faustão, o chapéu de Sérgio Reis, a camisa de Kaká... A um canto, uma dondoca chamada Beth Szafir diz a uma coluna social que “dá pena, dá pena mesmo” do povo de Paraisópolis.
É isso, pena, o máximo que a dondocagem consegue exprimir em relação aos pobres. Além desse conservadorismo, exprime-se nas palavras de um dos dondocas que brincava de medir o pinto com Eike Batista, José Carlos Semenzato, tentando ver quem arrematava mais bandulaques:
“–Se a gente investir na alfabetização dessas pessoas [dos pobres], vamos economizar muito em segurança para nossos filhos e netos."
Pronto, está aí a explicação para todo o circo, para toda aquela “generosidade”. Trata-se de “investir” em educar os pobres para a servidão, para que passem a saber o seu lugar (os subterrâneos de sempre) e não ousem atacar a propriedade privada, que o instituto fundamental da herança cuidará de transmitir a seus filhos e netos. Ainda que a arrecadação de pouco mais de R$ 2 milhões (dobrada por Eike) seja uma soma alta, para aqueles que a fizeram tratava-se apenas das migalhas convenientes à piedade liberal, como forma de perpetuar a concentração da riqueza e, conseqüentemente, a desigualdade social.
Sob a piedade que guia os donativos há a estratégia oculta de perpetuação da propriedade privada (e seu sucedâneo, a desigualdade), dissuadindo o eventual desafio dos pobres.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

As flores no chão


“Você não sabe o que é a quantidade de secreção que sai de um ser humano quando ele apanha.”
Dilma Roussef à Folha de S. Paulo, em 05de abril de 2009.



No momento em que a “oposição” ao atual governo federal ameaça (da forma mais baixa possível) usar a participação da candidata Dilma Roussef na luta armada contra a ditadura militar, lembro-me não apenas da frase acima estampada e da resposta dada ao senador José Agripino Maia (PSDB), oportunidade em que a então ministra respondeu ter orgulho de ter mentido em depoimento ao militares (quando não era possível nenhum diálogo).
Bastaria a resposta dada a Agripino e os opositores da candidata Dilma – se tivessem o mínimo senso do ridículo – deixariam de insistir na equivocada ranheta da “Dilma terrorista”. Embora eu seja daqueles que vêem o atual PT e PSDB como parte de um mesmo projeto político (com divergências performáticas), seria bastante oportuno questionar o que fez José Serra enquanto Dilma participava de um movimento guerrilheiro. Na mais explícita tática “vou salvar a minha careca”, o embrião de vampiro rumou para o Chile, onde se casou com uma chilena Allende (Mônica Allende, a esposa de Serra, não tem parentesco com Salvador Allende), talvez como forma de tentar, por um sobrenome, se afirmar como alguém de esquerda. Em vez de debater um projeto para o país, talvez porque tudo já esteja definido e as eleições sejam apenas um ritual insípido, inodoro e incolor, a “oposição” se dedica à desqualificação pessoal.
Somente uma crueldade sem limites poderia explicar o uso de alguém ter sido vítima da tortura como forma de desprestígio pessoal. A sensibilidade de imaginar quanta secreção sai de um corpo sob tortura, confesso, nunca tinha me ocorrido, até a frase de Dilma. Se até aquele momento, ela não tinha motivos para a minha admiração (como de resto inexiste em Serra, muito pelo contrário), a sensibilidade usada para comunicar a mais asquerosa das vivências fez-me admirá-la.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

O Estado brasileiro e o ET Homer Simpson


Os humanos enviam sinais que poderiam ser reconhecidos por alienígenas?

Com certeza! Enviamos sinais o tempo todo. Todos esses programas de TV são transmitidos para o espaço. A TV é o tipo de sinal mais comum, mas pode ser qualquer outro. Existem muitos outros tipos de comunicação acontecendo localmente e a maioria das ondas vai parar no sistema solar e até fora dele. Não sei se existem alienígenas tentando detectá-las, mas estamos emitindo sinais o tempo todo.

Roger Blandford, astrônomo britânico, diretor do Instituto de Astrofísica e Cosmologia da Universidade de Standford, EUA, em entrevista ao panfleto fascista Veja


Foi em 1955 que uma dupla caipira paulista – Palmeira e Biá – fez grande sucesso com uma música denominada “disco voador”. A música caipira nunca vira tamanho arroubo intergalático – “Tomara que seja verdade/ Que exista mesmo disco voador/ Que seja um povo inteligente/ Pra trazer pra gente a paz e o amor...” O que parecia, à primeira vista, ser algo distante das preocupações do homem do campo ou que parecia ser temerário ao bucolismo do “luar do sertão”, era então, por aqueles tempos, entoado positivamente. O vanguardismo de Palmeira e Biá (“Palmeira” – nome artístico de Diogo Mulero, nascido em Agudos/SP em 1918 e falecido em São Paulo/SP em 1967 – é autor da letra) deve ter causado perplexidade, visto que além da temática, na letra há inclusive gíria urbana – “tem gente que [...] acha que é fita os mistérios profundos” –, ainda que sob o reinado da viola.
Mais recentemente, aquelas mentes que não houverem sido acometidas de esquecimento supostamente decorrente de determinadas ervas lembrarão de Raul Seixas, em um quarto de pensão, tentando uma transmutação, dando como certa a existência do disco voador e de seus tripulantes, ecoando no ar um “oh!-oh!-oh!”, chamando de “seu moço” o tripulante do disco voador, pedindo que o levasse para quer que fosse. O desespero de Raul, louco para ser levado para uma das tantas estrelas por aí, é digno dos píncaros de São Tomé das Letras (e não de um mero quarto de pensão), onde há o mito sempre cultivado de que se conhece outras galáxias sem sair do lugar.
Mais recentemente ainda, os subterrâneos da radiofonia brasileira foram chacoalhados pela voz estridente da tatarana Joelma (de uma banda de forró cujo nome mais apropriado seria KY) dando conta de um meloso liquidificador colorido em que se ameaça “pegar carona num disco voador” como prova amorosa. Para doar os ouvidos a isso, só mesmo tomando uma “pinga do ET”, vendida em barraquinha de beira de estrada, no município de São Tomé das Letras (cidade onde se pode encontrar ET em todos os tamanhos, materiais e formatos).
É possível entender que Palmeira estivesse mesmo morrendo de tédio em Agudos (à sua época – década de 1950 – a cidade não devia ter mais que 10 mil habitantes) e nem se deve estranhar que tenha tanta devoção mesmo quando se trate de “intervenção” (como diz) alienígena: “Os homens do nosso planeta dão a impressão/ De que não têm mais crença/ Em vez de fabricar remédio/ Pra curar o tédio e outras doenças/ Inventam bomba de hidrogênio/ Usam o seu gênio fabricando bomba/ Mas não se esqueçam/ que por mais que cresçam/ Que perante deus qualquer gigante tomba.” Os pobres alienígenas seriam também ovelhas do Senhor, saberiam de Adão e Eva, e se brincasse seria bem possível a existência de etêzinhos caipiras entediados, perdidos no cosmos, pobres pecadores decaídos, fazendo barrancagem com uma vaquinha sideral!
Isso tudo pode parecer apenas troça, mas estão aí Alto Paraíso, Casimiro de Abreu, Varginha e adjacências para pôr pulga nos incautos (esses tomés que nem sabem de São Tomé das Letras!).
Mês passado, porém, mês do cachorro louco, o Estado brasileiro decidiu vir a público e deixar claro sua posição sobre os discos voadores e os “moços” (para “tocar” Raul) que os tripulam. Mas, a Aeronáutica, com a sobriedade (!) que cabe a quem “anda” pelos ares, não quis fugir em um “disco voador” (a prudência exige, aliás, que não se empregue esses termos do vulgo), mas apenas estabelecer parâmetros meramente formais para o caso de “objeto voador não identificado” (poderia ser uma bruxa!, quem sabe?) ser avistado por um dos seus membros.


Observe a portaria da Aeronáutica:


PORTARIA No- 551/GC3, DE 9 DE AGOSTO DE 2010


Dispõe sobre o registro e o trâmite de assuntos relacionados a "objetos voadores não identificados" no âmbito do Comando da Aeronáutica.


O COMANDANTE DA AERONÁUTICA, de conformidade com o previsto no inciso XIV do art. 23 da Estrutura Regimental do Comando da Aeronáutica, aprovada pelo Decreto nº 6.834, de 30 de abril de 2009, e considerando o que consta do Processo nº 67000.001974/2010-61, resolve:

Art. 1º As atividades do Comando da Aeronáutica (COMAER) relativas ao assunto "objetos voadores não identificados" (OVNI) restringem-se ao registro de ocorrências e ao seu trâmite para o Arquivo Nacional.

Art. 2º O Comando de Defesa Aeroespacial Brasileiro (COMDABRA), como órgão central do Sistema de Defesa Aeroespacial Brasileiro (SISDABRA), é a organização do COMAER responsável por receber e catalogar os registros referentes a OVNI relatados, em formulário próprio, por usuários dos serviços de controle de tráfego aéreo e encaminhá-los regularmente ao CENDOC.

Art. 3º O Centro de Documentação e Histórico da Aeronáutica (CENDOC) é a organização do COMAER responsável por copiar, encadernar, arquivar cópias dos registros encaminhados pelo COMDABRA e enviar, periodicamente, os originais ao Arquivo Nacional.

Art. º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 6º Revoga-se a Nota No C-002/MIN/ADM, de 13 de abril de 1978 e o Aviso No S-001/MIN, de 28 de fevereiro de
1989.

Ten.-Brig. do Ar JUNITI SAITO

DOU, Seção 01, n. 152, terça-feira, 10 de agosto de 2010, p. 101.

Nem Palmeira nem Raul Seixas viveram para ver tanto. Tivessem eles vivido, quando ouvissem o KY “cantando” (!!!) o seu disco voador e vissem essa portaria da Aeronáutica, acabariam pedindo um disco voador – não desses que, segundo Roger Blandford, o astrônomo birtânico, assistem TV no espaço (imaginem, quanta merda não estamos atirando ao espaço... os ET’s devem estar enfastiados de jogos do Corinthians, programas de culinária, domingões e novelas pastelões) –, desses que se fazem com bastante cachaça, canela, açúcar e limão.

sábado, 21 de agosto de 2010

"Urgente" ou a gente de Ur


Os ouvidos moucos das pessoas que se comprimem no interior do vagão do trem lotado, atravessando a metrópole em fim de tarde, nem põem sentido na mensagem proveniente dos autofalantes: “A Companhia informa: ‘Pedir esmolas e o comércio ambulante são práticas ilegais. Não promova essas ações.’” À revelia da mensagem, produtos que vão de termômetros a amendoins são comercializados no decorrer da viagem. Nas paredes de uma faculdade privada nordestina, quadros emoldurados exibem em letras vistas ao longe “Fora da lei, não há salvação!”. As molduras com a frase de Rui Barbosa estão nos corredores e em cada sala que se entre; não obstante isso, as pessoas se reúnem, passam, como se a moldura já houvesse sido incorporada pela parede. O Presidente República, no ano de 2009, editou vinte e sete Medidas Provisórias; essas medidas, segundo a atual Constituição, podem ser tomadas com força de lei, desde que haja relevância social e urgência (que não possa observar os trâmites usuais de criação de leis).
A legalidade é apenas o artifício capitalista por excelência, a névoa da igualdade e da liberdade meramente formais.
** Ur foi uma cidade da antiga Mesopotâmia, onde foi criado o primeiro corpo de leis que se tem notícias da história. Ur-Nammu teria sido esse legislador primeiro, mais de mil anos antes da era cristã.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Bandeira no lixo


Minha mãe tem 55 anos de idade e está no 1º ano do ensino médio de uma escola estadual da periferia de Osasco. Atualmente, anda muito preocupada sobre "por que os expressionistas se suicidavam". Hoje ela trouxe para casa a Antologia Poética de Manuel Bandeira. Contou que a professora deu exemplares do livro com ressalvas: na última semana, havia dado o mesmo livro a alunos de outra sala e eles tinham atirado os livros na lixeira.

E, abrindo o livro, Bandeira me diz: "Vão demolir esta casa./ Mas meu quarto vai ficar,/ Não como forma imperfeita/ Neste mundo de aparências:/ Vai ficar na eternidade,/ Com seus livros, com seus quadros,/ Intacto, suspenso no ar."
E olhando de lado, vejo Charles Baudelaire cheio de razão:
"– Meu belo cão, meu cãozinho, meu querido totó, vem cá, vem respirar um excelente perfume comprado no melhor perfumista da cidade.
E o cão, agitando a cauda, o que é, suponho, entre esses pobres seres, o sinal correspondente ao riso e ao sorriso, aproxima-se e, curioso, mete o nariz úmido no frasco destampado; porém subitamente, recuando de susto, late contra mim, à feição de reprimenda.
– Ah, miserável cão!, se eu te houvesse oferecido um embrulho de excremento, decerto o cheirarias com delícia e talvez o tivesses devorado. Assim, ó indigno companheiro de minha triste vida, tu te assemelhas ao público, a quem nunca se devem apresentar perfumes delicados, que o exasperam, mas imundícies cuidadosamente escolhidas."
* Na foto, Manuel Bandeira, com seus livros.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Até Branca de Neve já sabia: o arremedo de profecia


A Folha de S. Paulo é recomendável nem para embrulhar peixe, mas, dessa vez, estampou uma "profecia" que causou burburinho: depois do time de Dunga (vulga "seleção" brasileira) ter, em mais um modorrento jogo, para a próxima fase da Copa do Mundo, o jornal, em informe publicitário, se antecipou ao que ocorrerá nos próximos capítulos, e publicou a eliminação desse time de futebol varzeano (imagem anexa).
Enquanto os jornalistas de nossa mídia carcomida tentam iludir os incautos de que esse time joga futebol que valha a pena assistir (afinal, tudo está devidamente dissolvido sob a forma de mercadoria), Branca de Neve foi o súcubo que se intrometeu na noturna impressão da referida publicação profeticamente (desta vez!) xexelenta.

domingo, 27 de junho de 2010

Manoel da Conceição contra os moinhos institucionais


Chamando-me de lado, certo dia, um professor destes que se autoproclamam “o jurista”, após terem ido à Alemanha fazer doutorado e escrever teses Polizei-Ökonomie-und-qualquer-coisa, “aconselhou-me” (ponho aspas para referir a ameaça com roupas de conselho) que respeitasse as instituições, que o tipo de postura política tomado por mim e meus companheiros era equivocado, próprio de jovens, e que a madureza cuidaria de mostrar a mim e aos meus companheiros a inviabilidade de uma política para além das instituições. Dizendo-se membro de uma família jansenista, o homenzinho-burocrático-pretensamente-acadêmico que me chamara à sala vazia terminada a aula e saídos os alunos, indiretamente avisava-me que eu teria retaliações por empreender uma postura política trans-institucional no seio de uma carcomida instituição. Dias depois, viria o corte, por ele mesmo operado, lavrado laconicamente em ata, formalizando a retaliação; em seguida, viria novo chamamento a uma conversa, na qual me ofereceu o cinismo institucional, ao que lhe virei as costas. O doutor Polizei, jansenista como se dissera, disse, por última coisa, que eu lesse Ibsen, Um inimigo do povo.
Tempos depois, quando eu já me resumira a um batedor-de-ponto e pagador-de-contas (com os devidos juros ao banco, como é praxe), li, em idas e vindas em ônibus e trens, o livro de Henrik Ibsen, indicado pelo Dr. Polizei. Na peça, o personagem central, Dr. Stockmann, um médico de uma pequena cidadezinha balneária onde todos se conhecem, descobre que as águas da Estação Balneária (de propriedade do seu sogro e da qual é empregado) estavam contaminadas por micróbios de um curtume. Os interesses econômicos e políticos são postos desde o início e sob o signo da “moderação” – mantra do impressor jornalístico da cidade –, desenvolve-se um jogo sobre o impacto que a divulgação de tal informação teria sobre as rendas do turismo, principal fonte de receitas da cidade. De um lado, não se quer construir uma nova canalização para as águas, como sugerido pelo médico, e também não se quer que a informação afaste os veranistas da cidade.
No cerne do que Ibsen propõe em Um inimigo do povo está a (im)possibilidade do livre-pensador, o papel da opinião pública, o papel da oposição política, as relações entre economia e política; no campo moral, discute-se a questão das verdades das massas e da verdade contra as massas, questionando-se até que ponto uma verdade deve ser levada contra a maioria. É justamente por defender seu posicionamento (Ibsen, em tom organicista próprio da época, vale-se de Stockmann para atribuir uma complementaridade entre a podridão das águas e a podridão moral da comunidade) contra a massa que um homem anônimo se levanta e sentencia – “O sr. Está falando como um verdadeiro inimigo do povo!”. Ao final, Stockmann diz não às instituições (preserva, porém, a família), concluindo, contra todos, que “o homem mais poderoso do mundo é o que está mais só”. Por mais que o desfecho sem fechos dado por Ibsen à peça não permita um rótulo, uma resposta definitiva, é possível nela detectar (prescindindo-se das infinitas conjecturas aristotélicas, rousseaunianas e marxistas) um pessimismo em relação à relação indivíduo-instituições (do partido visto como “uma máquina de moer carne... carne humana!”). Mas, mesmo negada a massa e os partidos que se propõem às eleições (hoje, os partidos, as legendas), negadas as instituições (significativo que Stockmann não negue a família), não se usa a peça de Ibsen (por mais aristocrático que isso possa parecer) para discutir uma vanguarda, quando Stockmann decide, por fim, se pôr ao “lado dos pobres, dos que não possuem nada” para fazer surgir homens autônomos (“homens livres e dignos”), mesmo sob o romantismo de fazer brotar consciência em pessoas de estômagos vazios, além do fato de que consciência não seja por si só bastante.
Não fosse a contenda com Dr. Polizei (a quem espero não mais ter o desprazer de encontrar), talvez eu não houvesse lido a peça de Ibsen.
Outro dia, porém, diante da decisão da direção nacional do Partido dos Trabalhadores (PT) de impor às eleições estaduais a aliança PT-PMDB, fisiologicamente reafirmada na disputa à presidência da República, lembrei-me da peça de Ibsen, quando vi o PT-Maranhão sendo obrigado a se filiar à oligarquia que combatera desde o início – Sarney.
Em greve de fome, no plenário da Câmara, permaneceram o Deputado Domingos Dutra (PT-MA) e o “desconhecido” Manoel da Conceição – líder camponês maranhense de histórica militância de esquerda. Havendo morado no Maranhão por um ano (resumido a batedor-de-ponto e pagador-de-contas), eu ignorava, até aquela greve de fome que se estampava para o país pelos jornais, a existência do “Mané” da Conceição, esse homem que tivera recentemente (com apoio financeiro do Ministério da Reforma Agrária) reeditado seu livro escrito no exílio, quando da ditadura militar, e que agora se via, com os companheiros filiados ao PT-MA, constrangido a apoiar a oligarquia Sarney. Como escreveu o Prof. Wagner Cabral da Costa (artigo anexo): “A ironia não podia ser mais evidente: o mesmo governo petista que, por um lado, promove o resgate de sua memória e história; por outro, lhe recusa o direito de, aos 75 anos, continuar sendo um militante ativo das lutas sociais e políticas – defendendo a democracia interna do partido e a democratização do Maranhão contra a oligarquia patrimonial e golpista.”
Manoel da Conceição, pondo sentido ao termo práxis, ao viver suas idéias contra seu corpo fragilizado (indo parar no hospital), revela algo contrário ao cenário institucional do Brasil atual – a persistência do desejo de mudar o mundo, de transformá-lo, ainda que só o possa fazer, aos 75 anos, em silenciosa greve de fome. Isto só me faz mais convicto de que, no Brasil atual, quem viver efetivamente posturas de esquerda, defender uma posição revolucionária, será tachado entre anarquista e fascista por aqueles que o consenso tem como esquerdistas, moderados e direitistas. O que Manoel da Conceição surgiu para pedir não é nada revolucionário – que o PT-MA possa apoiar o “comunista” (sim, essa excrescência chamada PC do B!) Flávio Dino, e a oligarquia Sarney. Tudo isso que se passa entre os “comunistas” do PC do B e os sarneysistas, bem como a truculência do PT Nacional, está dentro do panorama institucional e, ao final de contas, se dissolverá no concerto capitalista das nações, em que eleições são apenas um “estouro de boiada”, com mais ou menos fé. O gesto de Manoel da Conceição, não, este está para além dessa geléia geral.
O que lamento é não ter conhecido o “Mané” da Conceição, enquanto morei no Maranhão. Parece que ele é destas pessoas – que como disse Manoel de Barros – pensam em “renovar o homem usando borboletas”.

Sobre Maradona, um cronópio



O constraste - aos menos a nós brasileiros - entre as figuras de Maradona e Dunga, atuais técnicos das seleções da Argentina e do Brasil, é evidente.

A explicação é cortazariana e simples: Dunga é um fama (delegado truculento do tipo que há tantos Brasil afora), e Maradona, um cronópio.

Júlio Córtazar, escritor argentino, escreveu sobre os cronópios:

Cuando los cronopios cantan sus canciones preferidas, se entusiasman de tal manera que con frecuencia se dejan atropellar por caminones e ciclistas, se caen por la ventana, y pierden lo que llevaban en los bolsillos y hasta la cuenta de los días. (CORTAZAR, Julio. Historias de cronopios y de famas. Bogotá: Editorial Nomos, 2005, p. 141.)


Em jogo contra a Grécia, pela primeira fase da Copa do Mundo em curso, dia 22 de junho, Maradona se assustou ao se deparar com a escalação do filosófico Sokratis Papastathopoulos e seu séquito de companheiros. El País mostrou o susto de Dom Diego, como se vê na charge acima.

sábado, 27 de março de 2010

O mundo de Grisha


"Sempre ouví dizer que todo matemático, físico ou psicólogo tem um pouco de louco. Este Mr.Perelman, como quase todos os Judeus, muito bom com os números, pisou no tomate, descalço. Qual é a diferença entre ir receber o prêmio e doa-lo aos famintos e não recebe-lo… TODA! Se a distancia que fica o norte real da terra em relação ao tamanho da corda do poço de Alexandría é igual a Pi ao quadrado elevado a duas vêzes a velocidade da massa vezes o volume e inversamente proporcional ao tranco da manivela do Ford 29 quando ao nível do mar… que se lixe! Importante, é sem dúvida, é a força motriz do progresso?.. É, porém com U$1.000.000,00 podería alimentar, como nunca antes, por uma semana que fôsse, 2 milhões de crianças famintas no Senegal, por exemplo. A Matemática é infinita mas, o MUNDINHO DESTE CARA É ASSIM Ó!"

Ignacio Opinéo Franco da Rocha (no "Estadão", claro!)

______

O mundo é do tamanho que o vemos. De dentro do seu apartamento-exílio em Leningrado, o mundo de Grisha (como é chamado Grigori Perelman)surge mesmo como um "mundinho assim ó" para a disseminada mentalidade da dondocagem politicamente correta. O mundo disseminado da dondocagem é feliz porque pode praticar a benemerência de alimentar as criancinhas por uma semana (muitas delas, desacostumadas, provavelmente morreriam enfastiadas); a dondocagem quer consumir - um milhão de dólares em alimentos para as criancinhas do Senegal farão da mais reles dondoca uma nova Madre Tereza! Será notícia no mundo todo, renderá outros milhões para as redes de alimentos (certamente, não faltarão uns sanduíches do Mcdonald's!). A disseminação da dondocagem é tanta que mesmo o "Partido Comunista" de Leningrado quis receber o dinheiro do prêmio recusado por Grisha; provavelmente, investiria numa "revolução" pelas urnas!
Enquanto isso, que se dane a dondocagem. Grisha está andando (literalmente) para o prêmio de 1 milhão de dólares com o qual tentaram lhe dondocar, por ter resolvido a "Conjectura de Poincaré". Segundo se especula, Grisha estaria em estepes próximas a Leningrado, onde costuma caminhar em busca de cogumelos. Só mesmo cogumelos para manter tamanha lucidez!

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Quem são os "terroristas"?

A excrescência não tem limites...



Até Cláudio Lembo (PSDB/SP) - que não pode ser acusado de "terrorismo de esquerda" - repudia essas "interpretações facciosas". Diante desse nível de "análise", o próprio Lembo aconselha a ir direto à fonte.
Observe:


Segunda, 11 de janeiro de 2010, 07h56

Vá à fonte

Cláudio Lembo - De São Paulo (do Terra Magazine)

Uma grande celeuma. Por pouco. O Governo Federal editou nos últimos dias de dezembro - mais precisamente no dia vinte e um daquele mês - extenso e estranho documento.
Estranho por indicar, com grandiloqüência, processo que se desenvolve continuamente, graças à instauração da democracia nos anos oitenta. A sua evolução é normal, apesar de núcleos reacionários contrários.
Este documento legal denomina-se PNDH-3. É o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos. Arrola temas comuns nos debates acadêmicos e presentes nos meios de comunicação.
Aqui e ali, utiliza linguagem marcada por uma deformação ideológica oriunda dos anos 60. Isto, porém, não incomoda. Indica, apenas, que seus autores, um dia, procuraram ser agentes da utopia.
Ora, quem lê, sem preconceitos, o documento presidencial constatará que ele enfoca temas que, necessariamente, deverão ser abordados pela sociedade e, depois, analisados pelo Congresso Nacional.
Em uma sociedade com conflitos sociais latentes, onde poucos dominam, pelas mais diversas formas, a grande maioria, preservando-a em situação alarmante, apontar temas para o debate é essencial.
Claro que alguns tópicos arrolados, no documento, à primeira vista, se assemelham descabidos. O uso de símbolos religiosos em recintos públicos da União, por exemplo.
A tradição cultural brasileira sempre aceitou - sem contestação, ainda porque a imensa maioria da sociedade pertencia a uma única religião - a afixação de símbolos religiosos em locais oficiais de trabalho.
Hoje, a formação da sociedade alterou-se. São inúmeras as confissões religiosas e as novas crenças que se acresceram ao cenário social do País. Antes que conflitos surjam, é bom que um Estado laico trate do tema.
Outros assuntos versados também parecem extravagantes. A verdade, no entanto, que eles permeiam a sociedade, apesar de alguns poucos quererem vê-los como descabidos.
Examinem-se alguns poucos. A situação das prostitutas no contexto social. Marginalizadas. Usadas como objetos. Repudiadas como seres fora da normalidade. Posição anti-social inaceitável.
A questão da homo-afetividade, já tratada por muitos países, inclusive pelos seus parlamentos - como aconteceu na última semana na Assembléia da República portuguesa - e na penumbra por aqui.
Há temas que causam aflição e desconforto permanente. Nem por isto não devem ser trazidos à tona e debatidos, a partir das inúmeras posições religiosas e visões, morais.
A eutanásia não pode ser esquecida. Até onde vai a vontade de familiares e médicos em manter a vida vegetativa? É moral manter a vida de quem se encontra condenado pela plena falência biológica?
O aborto criminalizado pela nossa lei penal e, assim, levando, particularmente, à mulher todo o ônus da condição humana, deve ser cinicamente omitido entre os problemas da sociedade?
Claro que estes assuntos, no campo moral, sempre causam repulsas. Nem por isto, porém, devem deixar de ser examinados e debatidos pela sociedade. Permanecer estagnados é que se mostra grave.
No campo político, o documento legal mostra-se limitado. Quer analisar o Estado Novo e os acontecimentos de 1964. Bom e oportuno. Mas violência ocorre no Brasil desde 1500. A colonização foi um ato de força.
São tantas e tão diversas as questões inseridas no Terceiro Programa Nacional dos Direitos Humanos que se torna difícil uma análise mais abrangente de seu conteúdo.
Contudo, oportuno notar que sua formatação não contém nenhuma força coercitiva. Trata-se apenas de um roteiro para futuros exercícios de cidadania.
Os professores, acostumados a ler os trabalhos contemporâneos de seus alunos, constatarão que o documento parece produto de uma tarefa própria de um exercício de informática.
Origina-se de uma longa atividade de coleta de dados, sem que isto aponte para qualquer vício cometido pelos seus autores. Na verdade eles foram a trabalhos concretizados pela União Européia, ultimamente.
Antes, contudo, nos anos sessenta, os temas consolidados mereceram grande explicitação nas universidades norte-americanas e, por aqui, em vários organismos privados de pesquisa e extensão.
O melhor, no caso do decreto n. 7.037, de 21 de dezembro de 2009 (acesse aqui), é o acesso ao texto integral pelo cidadão responsável. Faça este a sua própria análise do documento.
Ganham os direitos humanos, afastam-se as interpretações facciosas. Não ouça terceiros. Vá à fonte. É melhor e mais seguro.

Cláudio Lembo é advogado e professor universitário. Foi vice-governador do Estado de São Paulo de 2003 a março de 2006, quando assumiu como governador.
_____________
E diante dessa "imprensa" - que por "folhas", "vejas", "estadões" e "plim-plins" se propagam -, convido-lhes a uns trechos escritos por Henri Lefebvre, em 1968:

Opressiva e não-violenta, a escrita, ou mais exatamente a coisa escrita, é o fundamento do terror [grifo nosso]. [...] A escrita faz a lei. Muito mais ainda: ela é a lei. Ela obriga pela atitude imposta, pela fixação (do texto e do contexto), pela recorrência implacável (a volta atrás, a memória), pelo testemunho (transmissão e ensino), pela historicidade assim estabelecida para a eternidade e pelo eterno. [...] Uma sociedade baseada nas escritas e na coisa escrita caminha para o terrorismo. A ideologia que interpreta a tradição escrita ajunta à força persuasiva a intimidação. Todavia, jamais a coisa escrita consegue suplantar completamente a tradição oral, a Palavra transmitida de boca em boca.

LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. (Trad. Alcides João de Barros). São Paulo: Atlas, 2001, pp. 164 e 167, passim.