quarta-feira, 11 de março de 2009

As coisas que há nas flores


Descendo a Av. Morumbi, eu vinha pela noite de terça-feira, conversando com meu amigo Mocho de Minerva sobre a tão falada "pirataria"; Mocho falava de como as pessoas se levam a sério e ficam preocupadas com a "propriedade intelectual" [sic!], ansiosas para darem à Warner, à EMI, Sony, etc., os seus trocados. Isso de preferir ignorar o sujeito que sobrevive vendendo cópias não-autorizadas (que tem apenas isso como o seu ganha pão) e comprar um dvd ou cd com a devida fatia do capital monopolista. Mocho falava de como a propriedade privada acaba sendo o sustento de idéias (ou ideologias?) como Estado e Deus. Entramos na Estação Morumbi, o trem para Osasco estacionou e nos despedimos. Embarquei.

Minutos depois, não sei bem em qual estação, um homem se sentou no banco vago ao meu lado. O homem trazia uma camisa aberta sobre uma camiseta; dele exalava um forte odor de cigarro. Eu havia retirado um livro da bolsa e o lia (o livro é O direito no jovem Lukács: a filosofia do direito em História e consciência de classe, de Sílvio Luiz de Almeida). De repente, no interior do vagão, ouvia-se um chiado; ergui os olhos do livro, olhei para o lado, não dava para perceber de onde provinha o chiado... parecia ser um cão. O homem que se sentara o meu lado, então, disse, dirigindo-se a mim, que achava que animais eram proibidos nos trens; ao que retruquei, afirmando tudo ser possível nos trens. Meu interlocutor fez observar que os tempos são outros e que agora as coisas andam mais rígidas.

Desculpou-se, levou a mão na direção do livro que eu lia e, escusando-se de sua curiosidade, pediu para ver o que eu estava lendo. Mostrei. Era um homem magro, jovem, pouco mais de 30 anos. “Olhe: direito...” E eu complementando: “É, filosofia do direito...” O outro então observou que o direito é muito controvertido e que devia mesmo fazer bom par com a filosofia. Essa observação quase me fez lhe perguntar se ele se dedicava ao estudo de alguma coisa em especial; mas, contive-me. E ele continuou: “Sabe, eu sou muito curioso. Uma vez li um livro (já o procurei em sebos para comprar, mas nunca encontrei) chamado Como persuadir falando. Lembro-me bem de uma fábula narrada no livro que tratava de Afrodite, a deusa da sensualidade. Era uma fábula sobre a persuasão. Contava a história de um animal quadrúpede de três cabeças – uma cabeça de cachorro, uma cabeça de macaco e uma cabeça de gato; olhe só que estranho animal! A cabeça de cachorro para nos lembrar sempre de que o primeiro passo para persuadirmos é que o nosso interlocutor nos julgue fiel, confiável; a cabeça de macaco, para que nos lembremos de que a persuasão exige que sejamos racionais; e a cabeça de gato para nos lembrar que, ao persuadirmos, devemos ser tranqüilos.”

Assenti e demonstrei interesse na história. O homem, então, apenas com uma sacola de supermercado no colo, disse ter de usar bastante da persuasão. Eu quis saber para quê. E ele, seco: “Sou morador de rua; sou pedinte, peço o dia todo. Preciso persuadir.” Então perguntei se ele mentia, quando desenvolvia sua arte de persuasão. Ele respondeu que sim. Fiz observar que a persuasão não tem compromisso com a verdade e que a mentira tem um importante papel social. Ele acrescentou: “Sou publicitário, tenho talento em design... [apontou um cartaz publicitário na parede do trem e fez considerações técnicas].” E eu: “Mas, por que você se tornou morador de rua?” Então o homem contou que sua escolha se devia a problemas familiares, a razão porque acabara escolhendo a rua. Perguntei, então, se na rua havia mais solidariedade do que encontrava na sua família. Ele disse que não, que em sua casa tinha mais conforto (TV, DVD, internete, acesso a livros, etc.), e isso faz falta na rua. Cortando bruscamente o assunto, contou que é viciado em crack; que, às vezes, pára de usar drogas, trata-se, recupera-se, e em poucos dias já está restabelecido, com a vida organizada, com um micro novo... Mas, segundo contou, precisa viver como pedinte nas ruas para sustentar o vício do crack. No exercício de persuasão, prosseguiu, não adianta falar a verdade (“quando falo a verdade, não ganho nada!”), é preciso mentir sempre. Segundo sua percepção, as pessoas estão muito fechadas (condição por ele denominada de DAC [dispersão auto-centrada]) e está cada vez mais difícil atingi-las. Perguntei para onde ele ia naquela hora (23 h 30 min.); respondeu que estava indo dormir nas proximidades da Estação Ceasa.

O trem parou na Estação Villa-Lobos/Jaguaré, ele se levantou: “Chegou a minha estação; vou ficar aqui.” Fiz menção de me levantar... E ele: “Acho que você está muito ocupado, senão você podia descer e a gente continuava a conversa.” Eu: “Poxa, seria muito interessante, mas receio perder o último ônibus da Estação de Osasco para a minha casa...” Ele: “Então a gente se vê por aí...” Eu: “Vemos, sim, estou sempre por aqui nesse horário.”

Saiu, nem nos dizemos o nome; tomou a plataforma e caminhava em direção contrária à que o trem seguia. Se a sua estória/história era verdadeira, não saberei jamais, tampouco me interessa. Se fui persuadido de uma mentira, fui gratuitamente persuadido; ele nada pediu, eu nada dei. Mas, o que conta não é nada disso; o que conta é o quanto de vida cada um carrega consigo. Aquele homem, com sua sintaxe sem atropelos, suas concordâncias bem feitas, sua roupa desleixada, se odor de cigarro, sua magreza, sua curiosidade, sua preocupação com a persuasão, está “brotado de pessoinhas” (como diz Eduardo Galeano), tão encantante que apenas reafirma a máxima de Guimarães Rosa, segundo quem “as passagens contadas, verdadeiras ou não, são muito mais interessantes do que o realmente acontecido”.

O cão ainda chiava, debaixo de algum banco do vagão. Uma moça dizia a um rapaz: “Cresci numa casa cheia de marxismo, mas não tô nem aí, gosto muito do Padre Marcelo Rossi, do jeito dele pregar, das músicas dele...” Lentamente, fui caminhando para a última porta do vagão, já prenunciava o Largo de Osasco. Uma mulher que lia se levantou, caminhou e ficou parada do meu lado, com o livro seguro contra o peito. Bisbilhoteiramente, meu olho vasculhou sob seu braço e viu: Umberto Eco, Baudolino.



Nenhum comentário: