sábado, 4 de julho de 2009

O alcoviteiro universal: "chame a polícia!"


"Em 1919, em um de seus famosos e divertidos happenings, os dadaístas berlinenses promoveram uma corrida pública entre uma máquina de escrever e uma máquina de costura. Enquanto Raoul Hausmann costurava uma fita de crepe interminável, Richard Huelsenbeck datilografava desesperadamente folha após folha um texto incompreensível. Finda a corrida, o júri deu a vitória à máquina de costura, provocando o protesto de Huelsenbeck, que atirou sua máquina ao chão.

O aparente nonsense do happening dadaísta ilustra um aspecto pouco considerado da comunicação humana: a escrita e o tempo criado por ela, inauguradores não apenas de toda uma importante era da palavra visual, mas também instrumentos da conquista de um tempo lento."


BAITELLO JUNIOR, Norval. O tempo lento e o espaço nulo. Mídia primária, secundária e terciária. (p. 04)
Disponível na pàgina virtual da FAPESP; acesso realizado em 04.06.2009.


Assistindo a um dos nenhum pouco recomendáveis telejornais brasileiros (o SPTV - 2ª edição), deparei-me com uma "notícia" que, instantaneamente, remeteu-me à corrida dadaísta de 1919, entre uma máquina de escrever e uma máquina de costura. Não tanto pela questão estético-literária (de resto inexistente na "notícia" do telejornal), mas sim pelo happening involuntário que os assaltantes do caixa eletrônico de um banco (posto em um supermercado) protagonizaram no limiar entre a noite passada e o dia de hoje.

Segundo o telejornal, quinze homens (imagine a proporção da mobilização) se dedicaram a render, durante a madrugada passada, na zona sul de São Paulo, os guardas e colocar o caixa eletrônico (um monstro metálico de cerca de 300 quilos) dentro de um furgão. Ao sair em alta velocidade e passar por uma lombada de uma pacata rua de Cidade Dutra, o caixa eletrônico caiu do carro. Os assaltantes fugiram e deixaram o caixa do Banco do Brasil tombado no meio da rua.

Além do barulho que teria causado grande susto e acordado moradores da rua, o mais inusitado (e daí o happening involuntário, de sentidos dadaístas) era uma sirene de alarme e uma voz masculina grave pronunciando uma mensagem grave:

"- Atenção! Esta máquina está sendo roubada! Por favor, chame a polícia!"

Uma senhora disse à reportagem:"Nunca vi um [caixa eletrônico] assim na rua, só vejo no banco..."

Literalmente, os moradores daquela rua souberam (acordando assustados) o que é bank home - jargão publicitário de vários bancos. Receberam o banco na porta de casa. Quantos, necessitados de um dinheirinho, não terão se frustrado ao ver que do monstrengo metálico nenhuma cédula, nenhuma pataca caíra, nada; pior que isso, a mensagem defensora da propriedade, "chame a polícia!" Os próprios assaltantes (depois do esforço de uma população de quinze homens) - apuraria a perícia - não levaram nada, pataca alguma.

Esta semana, indo até a agência do banco que tem os maiores lucros da América Latina, fui barrado sucessivas vezes, depois de ter tirado chaves, caneta, tudo. Iria encontrar minha companheira, que estava nos intestinos daquele monstro, filiando-se às suas "facilidades" para receber um suado salariozinho. Depois que eu saíra dali emputecido, ela me diria: "[...] mas é que eles foram assaltados hoje..." E eu: "é sorte deles que eu nada saiba de explosivos."

Os moradores da pacata rua da zona sul da cidade, ao ver o aviltante dinheiro do banco, vestido de carapaça metálica, diante das suas casas, certamente terão tido o desejo do saque sem culpa, a vingança gostosa de diminuir o pernicioso lucro bancário (isso que é mínimo, já que "diminuir lucros" nada afeta; alguma providência drástica teria de levá-los ao prejuízo). Não o saque com senhas e administrado por letras e datas de nascimento, mas o saque filho de "saquear", sem limites e sem taxas de juros.

O estrondo do caixa eltrônico no meio da rua e sua sirene com a mensagem de voz (que terá causado dor de cabeça a muitos moradores) bem mereceriam um Bertold Brecht caminhando por ali, para propor uma pergunta estranha aos telejornais e ao ramerrão das ocorrências policiais: "O que é roubar um banco em comparação com fundar um banco?"




Um comentário:

marginário disse...

Um ato de profanação do "Senhor das Distâncias": contra as apropriações virtuais e gigantescas da múltipla "Camorra Financeira", o puro e simples "saque". Taí, uma política do "saquear", belo texto, Panapaná!

ps. Os conservadores da Lei e da Ordem diriam: "apologia deliberada ao crime". Sim, realmente. É preciso, em certos momentos, fazer uso da "ilegalidade" para trazer à luz os crimes encobertos pelas mantas resplandecentes da legalidade. Atos estéticos puros. Sem saber, a "quadrilha" dadaísta paulistana é vanguarda avant la lettre, os situacionistas não pensariam tão bem, são bundões perto destes caras (logicamente, o despojo do saque, se ele fosse bem sucedido, seria para comprar coisas que estão disponíveis nos chopins da elite, mas isso pouco importa aqui).