domingo, 27 de junho de 2010

Manoel da Conceição contra os moinhos institucionais


Chamando-me de lado, certo dia, um professor destes que se autoproclamam “o jurista”, após terem ido à Alemanha fazer doutorado e escrever teses Polizei-Ökonomie-und-qualquer-coisa, “aconselhou-me” (ponho aspas para referir a ameaça com roupas de conselho) que respeitasse as instituições, que o tipo de postura política tomado por mim e meus companheiros era equivocado, próprio de jovens, e que a madureza cuidaria de mostrar a mim e aos meus companheiros a inviabilidade de uma política para além das instituições. Dizendo-se membro de uma família jansenista, o homenzinho-burocrático-pretensamente-acadêmico que me chamara à sala vazia terminada a aula e saídos os alunos, indiretamente avisava-me que eu teria retaliações por empreender uma postura política trans-institucional no seio de uma carcomida instituição. Dias depois, viria o corte, por ele mesmo operado, lavrado laconicamente em ata, formalizando a retaliação; em seguida, viria novo chamamento a uma conversa, na qual me ofereceu o cinismo institucional, ao que lhe virei as costas. O doutor Polizei, jansenista como se dissera, disse, por última coisa, que eu lesse Ibsen, Um inimigo do povo.
Tempos depois, quando eu já me resumira a um batedor-de-ponto e pagador-de-contas (com os devidos juros ao banco, como é praxe), li, em idas e vindas em ônibus e trens, o livro de Henrik Ibsen, indicado pelo Dr. Polizei. Na peça, o personagem central, Dr. Stockmann, um médico de uma pequena cidadezinha balneária onde todos se conhecem, descobre que as águas da Estação Balneária (de propriedade do seu sogro e da qual é empregado) estavam contaminadas por micróbios de um curtume. Os interesses econômicos e políticos são postos desde o início e sob o signo da “moderação” – mantra do impressor jornalístico da cidade –, desenvolve-se um jogo sobre o impacto que a divulgação de tal informação teria sobre as rendas do turismo, principal fonte de receitas da cidade. De um lado, não se quer construir uma nova canalização para as águas, como sugerido pelo médico, e também não se quer que a informação afaste os veranistas da cidade.
No cerne do que Ibsen propõe em Um inimigo do povo está a (im)possibilidade do livre-pensador, o papel da opinião pública, o papel da oposição política, as relações entre economia e política; no campo moral, discute-se a questão das verdades das massas e da verdade contra as massas, questionando-se até que ponto uma verdade deve ser levada contra a maioria. É justamente por defender seu posicionamento (Ibsen, em tom organicista próprio da época, vale-se de Stockmann para atribuir uma complementaridade entre a podridão das águas e a podridão moral da comunidade) contra a massa que um homem anônimo se levanta e sentencia – “O sr. Está falando como um verdadeiro inimigo do povo!”. Ao final, Stockmann diz não às instituições (preserva, porém, a família), concluindo, contra todos, que “o homem mais poderoso do mundo é o que está mais só”. Por mais que o desfecho sem fechos dado por Ibsen à peça não permita um rótulo, uma resposta definitiva, é possível nela detectar (prescindindo-se das infinitas conjecturas aristotélicas, rousseaunianas e marxistas) um pessimismo em relação à relação indivíduo-instituições (do partido visto como “uma máquina de moer carne... carne humana!”). Mas, mesmo negada a massa e os partidos que se propõem às eleições (hoje, os partidos, as legendas), negadas as instituições (significativo que Stockmann não negue a família), não se usa a peça de Ibsen (por mais aristocrático que isso possa parecer) para discutir uma vanguarda, quando Stockmann decide, por fim, se pôr ao “lado dos pobres, dos que não possuem nada” para fazer surgir homens autônomos (“homens livres e dignos”), mesmo sob o romantismo de fazer brotar consciência em pessoas de estômagos vazios, além do fato de que consciência não seja por si só bastante.
Não fosse a contenda com Dr. Polizei (a quem espero não mais ter o desprazer de encontrar), talvez eu não houvesse lido a peça de Ibsen.
Outro dia, porém, diante da decisão da direção nacional do Partido dos Trabalhadores (PT) de impor às eleições estaduais a aliança PT-PMDB, fisiologicamente reafirmada na disputa à presidência da República, lembrei-me da peça de Ibsen, quando vi o PT-Maranhão sendo obrigado a se filiar à oligarquia que combatera desde o início – Sarney.
Em greve de fome, no plenário da Câmara, permaneceram o Deputado Domingos Dutra (PT-MA) e o “desconhecido” Manoel da Conceição – líder camponês maranhense de histórica militância de esquerda. Havendo morado no Maranhão por um ano (resumido a batedor-de-ponto e pagador-de-contas), eu ignorava, até aquela greve de fome que se estampava para o país pelos jornais, a existência do “Mané” da Conceição, esse homem que tivera recentemente (com apoio financeiro do Ministério da Reforma Agrária) reeditado seu livro escrito no exílio, quando da ditadura militar, e que agora se via, com os companheiros filiados ao PT-MA, constrangido a apoiar a oligarquia Sarney. Como escreveu o Prof. Wagner Cabral da Costa (artigo anexo): “A ironia não podia ser mais evidente: o mesmo governo petista que, por um lado, promove o resgate de sua memória e história; por outro, lhe recusa o direito de, aos 75 anos, continuar sendo um militante ativo das lutas sociais e políticas – defendendo a democracia interna do partido e a democratização do Maranhão contra a oligarquia patrimonial e golpista.”
Manoel da Conceição, pondo sentido ao termo práxis, ao viver suas idéias contra seu corpo fragilizado (indo parar no hospital), revela algo contrário ao cenário institucional do Brasil atual – a persistência do desejo de mudar o mundo, de transformá-lo, ainda que só o possa fazer, aos 75 anos, em silenciosa greve de fome. Isto só me faz mais convicto de que, no Brasil atual, quem viver efetivamente posturas de esquerda, defender uma posição revolucionária, será tachado entre anarquista e fascista por aqueles que o consenso tem como esquerdistas, moderados e direitistas. O que Manoel da Conceição surgiu para pedir não é nada revolucionário – que o PT-MA possa apoiar o “comunista” (sim, essa excrescência chamada PC do B!) Flávio Dino, e a oligarquia Sarney. Tudo isso que se passa entre os “comunistas” do PC do B e os sarneysistas, bem como a truculência do PT Nacional, está dentro do panorama institucional e, ao final de contas, se dissolverá no concerto capitalista das nações, em que eleições são apenas um “estouro de boiada”, com mais ou menos fé. O gesto de Manoel da Conceição, não, este está para além dessa geléia geral.
O que lamento é não ter conhecido o “Mané” da Conceição, enquanto morei no Maranhão. Parece que ele é destas pessoas – que como disse Manoel de Barros – pensam em “renovar o homem usando borboletas”.

Um comentário:

marginário disse...

borboleta que avoa só, é só uma borboleta. borboleta que avoa junto é um panapaná! (Excelente o texto, e me lembrou de algumas coisas...)