Depois de cinco dias de seqüestro, uma adolescente (moradora de um conjunto habitacional de moradias populares) foi morta pelo namorado, ocasião em que também ficou ferida uma amiga da jovem seqüestrada, que também fora retida no interior do apartamento. O fato ocorreu na periferia da cidade de Santo André, Grande São Paulo. No decorrer do seqüestro, jornalistas fizeram estardalhaço semelhante ao ocorrido quando do recente caso de uma menina atirada (supostamente pelo próprio pai) do sexto andar de um prédio. Também há paralelos – por se tratar de um seqüestro – com o caso do seqüestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro, em 2001, fato que foi objeto de dois filmes – Ônibus 174 e Última parada – 174.
O espetáculo midiático abrangeu todo o período do seqüestro, seguido de intermináveis conjecturas a respeito de erros da polícia, de perfil psicológico do seqüestrador, de boletins médicos das internadas (até a morte da vítima), sendo que até mesmo os órgãos doados da falecida foram objeto da espiação midiática, a fim de saber para onde e para quem iriam. Nada, porém, foi dito sobre o local onde sucedeu o seqüestro (os moradores do conjunto habitacional ficaram todos impossibilitados pela polícia de saírem de suas casas, sequer podendo ir trabalhar) e, muito menos, sobre a condição social dos envolvidos (o enciumado namorado armado com um revólver calibre 32) e a responsabilidade da mídia (principalmente das redes de TV) no desfecho do ocorrido. O amor, o ciúme e o crime, tais como difundidos pela mídia, existem em si, independentemente dos seres humanos que os sentem, praticam ou constroem.
Após o desfecho do caso, com ou sem erro da polícia (aliás essa mesma polícia nada mais tinha a ver com o confronto ocorrido na tarde do dia 16 de outubro, quando as polícias civil e militar se agrediram mutuamente com vários feridos, numa tentativa frustrada de policiais grevistas de chegarem ao Palácio dos Bandeirantes, para levarem suas reivindicações ao governador do Estado de São Paulo), a Rede Globo, a maior rede de TV brasileira, pôs em seus estúdios Rodrigo Pimentel, ex-comandante do BOPE, figura que se midiatizara como um dos elaboradores do filme mais pirateado da história do país, Tropa de Elite. O ex-militar logo cuidou de defender a polícia paulista, definindo-a como a mais preparada dentre as polícias brasileiras para esse tipo de operação, haja vista suas técnicas serem inspiradas na Swat, a polícia americana, mais uma vez revolvendo o graveto midiático vendido por Hollywood, de uma polícia de tolerância zero, protagonista de vários filmes de “final feliz”. Vários foram os que conjecturaram por que a polícia paulista não havia matado o namorado enciumado (transformado em seqüestrador), antes que ele tivesse atirado nas vítimas; tese natural – o tiro de comprometimento (quando é morto o seqüestrador) resolveria tudo (já que a vida do seqüestrador era inferior às outras) e propiciaria ainda mais espetáculo (um atirador de elite, estrategicamente posicionado, com uma arma de longo alcance, acertando o “bandido”, com seu revolver 32). Outros se perguntavam por que o rapaz não sem matou, também “resolvendo os problemas” e alimentando fartamente o espetáculo. Saindo preso, o “bandido” ficou sem seu advogado, que, evocando os microfones,explicou que deixava o caso pelo fato do seu cliente não ter cumprido sua palavra. Após a morte, após a doação dos órgãos da falecida, a mídia se alimenta das performances do sepultamento... o namorado enciumado (sem qualquer passagem pela polícia, e agora seqüestrador e homicida) já está devidamente condenado e nada que lhe ocorrer será, aos olhos da “opinião pública”, demais.
Na tarde de hoje (20.10), porém, algo interessante se passou: regurgitando o caso, a Rede Globo levou ao estúdio do Jornal Hoje (de abrangência nacional) um psiquiatra, Raul Gorayeb, para falar sobre o assunto e reafirmar todos os clichês do conservadorismo. Mas, eis que estando ali, o psiquiatra disse:
“– Eu prefiro focar de outro jeito; gostaria de perguntar, por exemplo, o que a nossa sociedade faz hoje com os jovens. A sociedade exige que eles aprendam a ter prazer e sucesso a qualquer custo, não importa o preço que se pague. Hoje em dia você é instigado a não aceitar falhas, perdas, insucessos, e reagir muitas vezes de uma forma bombástica quando as coisas não estão indo bem. Onde ficou, no nosso processo educacional, o lugar para que as pessoas aceitem que a vida também é feita de insucessos e problemas? Eu não o coloco como vítima, mas todos nós somos frutos de uma sociedade, na medida em que somos educados por ela.”
Interrupção da jornalista performática:
“– Mas então o senhor está querendo dizer que ele [Lindemberg] é uma vítima do sistema?!”
E o psiquiatra:
“– Não, não o coloco como vítima; eu acho que todos nós somos frutos de uma sociedade. A palavra ‘vítima’ tem um desvio meio moralista. Mesmo que uma tragédia dessas proporções não aconteça com freqüência, a gente tem que pensar no que se pode fazer em casos assim. Nós somos uma sociedade que induz os jovens a isso, na medida em que exigimos deles um absurdo – e não só dos jovens, dos adultos também. Essa tragédia toda deve dar a nós a oportunidade de aprender com nossos erros.”
Outras interrupções se sucedem: “Há vários outros jovens possessivos que explodem quando termina uma relação, como tratá-los, como observá-los, como cuidar desses jovens?”, “que devem fazer os pais que têm filhas adolescentes namorando homens mais velhos? Devem proibir?”...
As palavras do psiquiatra, por resvalarem no modo de produção social, rangeram entre os jornalistas, cujos ouvidos, àquela hora, já estariam solapados pelo "corta!, corta!". Mas, quantas pessoas (com seus imaginários midiaticamente sentimentalizados) terão olhado com atenção suficiente para perceber as referências indiretas (e talvez inconscientes) do entrevistado à seletividade do sistema penal e, conseqüentemente, ao modo de produção social?
O espetáculo midiático abrangeu todo o período do seqüestro, seguido de intermináveis conjecturas a respeito de erros da polícia, de perfil psicológico do seqüestrador, de boletins médicos das internadas (até a morte da vítima), sendo que até mesmo os órgãos doados da falecida foram objeto da espiação midiática, a fim de saber para onde e para quem iriam. Nada, porém, foi dito sobre o local onde sucedeu o seqüestro (os moradores do conjunto habitacional ficaram todos impossibilitados pela polícia de saírem de suas casas, sequer podendo ir trabalhar) e, muito menos, sobre a condição social dos envolvidos (o enciumado namorado armado com um revólver calibre 32) e a responsabilidade da mídia (principalmente das redes de TV) no desfecho do ocorrido. O amor, o ciúme e o crime, tais como difundidos pela mídia, existem em si, independentemente dos seres humanos que os sentem, praticam ou constroem.
Após o desfecho do caso, com ou sem erro da polícia (aliás essa mesma polícia nada mais tinha a ver com o confronto ocorrido na tarde do dia 16 de outubro, quando as polícias civil e militar se agrediram mutuamente com vários feridos, numa tentativa frustrada de policiais grevistas de chegarem ao Palácio dos Bandeirantes, para levarem suas reivindicações ao governador do Estado de São Paulo), a Rede Globo, a maior rede de TV brasileira, pôs em seus estúdios Rodrigo Pimentel, ex-comandante do BOPE, figura que se midiatizara como um dos elaboradores do filme mais pirateado da história do país, Tropa de Elite. O ex-militar logo cuidou de defender a polícia paulista, definindo-a como a mais preparada dentre as polícias brasileiras para esse tipo de operação, haja vista suas técnicas serem inspiradas na Swat, a polícia americana, mais uma vez revolvendo o graveto midiático vendido por Hollywood, de uma polícia de tolerância zero, protagonista de vários filmes de “final feliz”. Vários foram os que conjecturaram por que a polícia paulista não havia matado o namorado enciumado (transformado em seqüestrador), antes que ele tivesse atirado nas vítimas; tese natural – o tiro de comprometimento (quando é morto o seqüestrador) resolveria tudo (já que a vida do seqüestrador era inferior às outras) e propiciaria ainda mais espetáculo (um atirador de elite, estrategicamente posicionado, com uma arma de longo alcance, acertando o “bandido”, com seu revolver 32). Outros se perguntavam por que o rapaz não sem matou, também “resolvendo os problemas” e alimentando fartamente o espetáculo. Saindo preso, o “bandido” ficou sem seu advogado, que, evocando os microfones,explicou que deixava o caso pelo fato do seu cliente não ter cumprido sua palavra. Após a morte, após a doação dos órgãos da falecida, a mídia se alimenta das performances do sepultamento... o namorado enciumado (sem qualquer passagem pela polícia, e agora seqüestrador e homicida) já está devidamente condenado e nada que lhe ocorrer será, aos olhos da “opinião pública”, demais.
Na tarde de hoje (20.10), porém, algo interessante se passou: regurgitando o caso, a Rede Globo levou ao estúdio do Jornal Hoje (de abrangência nacional) um psiquiatra, Raul Gorayeb, para falar sobre o assunto e reafirmar todos os clichês do conservadorismo. Mas, eis que estando ali, o psiquiatra disse:
“– Eu prefiro focar de outro jeito; gostaria de perguntar, por exemplo, o que a nossa sociedade faz hoje com os jovens. A sociedade exige que eles aprendam a ter prazer e sucesso a qualquer custo, não importa o preço que se pague. Hoje em dia você é instigado a não aceitar falhas, perdas, insucessos, e reagir muitas vezes de uma forma bombástica quando as coisas não estão indo bem. Onde ficou, no nosso processo educacional, o lugar para que as pessoas aceitem que a vida também é feita de insucessos e problemas? Eu não o coloco como vítima, mas todos nós somos frutos de uma sociedade, na medida em que somos educados por ela.”
Interrupção da jornalista performática:
“– Mas então o senhor está querendo dizer que ele [Lindemberg] é uma vítima do sistema?!”
E o psiquiatra:
“– Não, não o coloco como vítima; eu acho que todos nós somos frutos de uma sociedade. A palavra ‘vítima’ tem um desvio meio moralista. Mesmo que uma tragédia dessas proporções não aconteça com freqüência, a gente tem que pensar no que se pode fazer em casos assim. Nós somos uma sociedade que induz os jovens a isso, na medida em que exigimos deles um absurdo – e não só dos jovens, dos adultos também. Essa tragédia toda deve dar a nós a oportunidade de aprender com nossos erros.”
Outras interrupções se sucedem: “Há vários outros jovens possessivos que explodem quando termina uma relação, como tratá-los, como observá-los, como cuidar desses jovens?”, “que devem fazer os pais que têm filhas adolescentes namorando homens mais velhos? Devem proibir?”...
As palavras do psiquiatra, por resvalarem no modo de produção social, rangeram entre os jornalistas, cujos ouvidos, àquela hora, já estariam solapados pelo "corta!, corta!". Mas, quantas pessoas (com seus imaginários midiaticamente sentimentalizados) terão olhado com atenção suficiente para perceber as referências indiretas (e talvez inconscientes) do entrevistado à seletividade do sistema penal e, conseqüentemente, ao modo de produção social?
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