sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Sobre as ilusões de um “Yes, we can” multicultural


Quando superamos desafios aparentemente intransponíveis. Quando nos disseram que não estávamos preparados, ou que não deveríamos tentar, ou que não podemos, gerações de norte-americanos responderam com uma crença simples, que resume o espírito de um povo: “Sim, nós podemos”. Esta crença foi escrita nos documentos fundadores, que declararam o destino de uma nação: “Sim, nós podemos”.
Era sussurrada por escravos e abolicionistas, enquanto abriam uma trilha rumo à liberdade nas noites mais escuras.
“Sim, nós podemos” foi a frase cantada pelos imigrantes que deixavam terras distantes e pelos pioneiros que caminhavam para o Oeste, apesar da natureza impiedosa.
“Sim, nós podemos” era o chamado dos trabalhadores que organizavam; das mulheres que chegavam às urnas, de um presidente que escolheu a Lua como nossa nova fronteira; e de um rei [Martin Luther King Jr] que chegou ao topo da montanha e apontou o caminho à Terra Prometida. “Sim, podemos” para a justiça e a igualdade.
“Sim, podemos” para a oportunidade e a prosperidade. “Sim, podemos” curar esta nação. “Sim, podemos” consertar este mundo.
“Sim, nós podemos”.

Trecho final do discurso de Barack Obama em New Hampshire, em 08 de janeiro de 2008.

Ainda sob o influxo do delírio planetário em torno da vitória de Barack Obama à presidência dos Estados Unidos da América (04 nov.), é freqüente ouvir a frase “só espero que ele corresponda a toda a esperança nele depositada”. Nada mais irracional do que esta frase e o próprio delírio: é óbvio que Barack Obama não corresponderá (ainda que subjetivamente o queira) à mínima fração dos que o miram como um novo messias, por um motivo bastante simples – ele se tornou presidente dos EUA. Os enganos todos se iniciam quando as pessoas se prendem a um símbolo – o “homem negro” de Hugo Chávez[i] –, como se este, qual um taumaturgo, pudesse mesmo “consertar este mundo”; como se a peça publicitária “Yes, we can”[ii] (lema, aliás, originário das greves camponesas estadunidenses dos anos 1970[iii]) fosse ser algo mais que palavras. Ninguém ignora que Obama não padece da estupidez dos xerifes republicanos, principalmente da “inteligência” de Bush; mas supor que um símbolo (ainda que forte, dada a força do racismo estadunidense) possa “curar” a nação e “consertar o mundo”, é indicativo de alienação típica da Geração Harry Potter.
Dirão certamente que esta linha argumentativa pertence ao “ceticismo fatalista”
[iv], postura resumível na frase “nada muda, o imperialismo estadunidense continuará da mesma forma”. É pior do que isso: é claro que algo muda, que Obama não é Bush; mas, essa mudança meramente simbólica (esse homem simbólico, fazedor de uma política simbólica, reivindicado como a possibilidade histórica destes tempos[v]) pode apenas o que podem os símbolos – serem objeto conveniente de manipulação, sem que se leve em conta o seu sentido, como ocorreu, aliás, com a peça publicitária “Yes, we can”, explorada à exaustão, mediante a utilização de um batalhão de celebridades e estratégias de marketing virtual. A pasteurização dos tempos sombrios em que vivemos não deixa imune qualquer símbolo, seja o lema dos camponeses estadunidenses dos anos 1970, seja o legado da esquerda (melancolicamente resumida em movimentos sociais[vi] e em self-made mans eleitorais, tão politicamente consistente quanto qualquer mercadoria, qualquer caixa de sabão-em-pó que “revolucionará a sua vida”), seja o “homem negro”, cujos fracassos serão todos computados na exclusiva responsabilidade de todas as pessoas negras. O pensamento simbólico (já o dissera, em meados do século passado, o filósofo francês Henri Lefebvre) é aquele que “permite que muitas pessoas discorram, formem frases corretas, sem nem sequer saberem do que falam. O pensamento simbólico é aquele dos tagarelas e de um certo número de alienados.”[vii]
Grande parte da distorção interpretativa sobre a vitória de Obama reside no fato de que atribuem ao presidente dos EUA um poder que ele não tem. A ilusão de achar que o poder está no aparato de Estado (mesmo se tratando de um Estado-xerife como o estadunidense), mais precisamente na cúpula do Executivo, é bastante conveniente a todos aqueles que o Estado realmente representa – os grandes monopólios, corporações e especuladores internacionais. A Geração Harry Potter acredita que o presidente dos EUA seja o homem mais poderoso do mundo, que os EUA sejam a nação mais poderosa do mundo; todo esse “poder”, porém, não se faz à margem do servilismo de todos aqueles que emitiram suas notas reverenciais ao novo presidente, desde os que por ele torciam como se torce por um time de futebol, até aqueles que o rechaçavam, chegando a dizê-lo “mulçumano” ou “socialista”. O fetichismo do Estado e do chefe de Estado como o Poder foi erro em que os próprios movimentos revolucionários marxistas do século XX incorreram. Indisfarçável esse fetichismo quando se vê que Obama, valendo-se de eleições e das vias institucionais, propõe “curar” os EUA e “consertar o mundo”, em evocação retórica do reformismo social-democrata. Reafirma-se por essa via, a crença de que o poder está no Estado e que este pode ser utilizado para mudar a sociedade; ainda mais esse fetichismo do Estado é revigorado com a atual crise financeira ou crise do desvario especulativo, quando as tetas estatais são oferecidas às bocas sedentas dos falidos.
O fetichismo social-democrata, segundo John Holloway (cientista política irlandês, residente no México), “isola o Estado do seu contexto social: atribui-lhe uma autonomia que ele de fato não tem. Na realidade, o que o Estado faz está limitado e condicionado pelo fato de que existe só como um nó em uma rede de relações sociais, que se centra, de maneira crucial, na forma que o trabalho está organizado.”
[viii] Ainda que a eleição de Obama tenha se dado com inédita eficiência no manuseio de tecnologias da informação, principalmente a internete, o que representou a adesão majoritária da juventude, esse simples fato não garantirá ausência de isolamento do Estado em relação ao contexto social. Não apenas Obama não era ainda o presidente do país (note-se, entretanto, que mesmo após sua eleição, o “homem negro” cuida de manter aberta uma página virtual para interlocução com a nação), como também a adesão de uma geração formada por adolescentes esmagadoramente despolitizados (razão por que a chamamos “Geração Harry Potter”) ou as contribuições para financiamento de campanha provinda de particulares, não pode significar enraizamento do presidente eleito ao contexto social estadunidense. Aparentemente, Obama e suas propostas (“Yes, we can”) estão enraizados entre os estadunidenses; aparentemente, o presidente eleito – dada a propaganda sobre as inúmeras contribuições particulares ao seu fundo de campanha – terá mais autonomia que outros presidentes financiados por petroleiros, pela indústria de armas ou outros monopólios. Contudo, a “onda Obama”, o desvario da “Geração Harry Potter” (em cujo seio a política é substituída pela auto-ajuda mercantilizadora de tudo), tem a mesma solidez do “Yes, we can”: uma bruma de símbolos, um lema descafeinado, com raízes-imagens fincadas na “teia” virtual. Nem seria propriamente um “lema descafeinado”, já que a “realidade virtual”, como observa Slavoj Zizek, não se compreende em termos de quantidade (“café sem cafeína”), mas no fato de que “suspende a própria noção de realidade”.[ix]
As palavras de Obama em New Hampshire – “pediram para que parássemos e tivéssemos senso de realidade [grifamos]. Avisaram-nos para não oferecermos às pessoas deste país falsas esperanças.” – ressalvam o que está sendo posto em prática: a ideologia multicultural como dissimulação do capitalismo, ora vestido de neoliberalismo. Simplesmente, o que está em questão não são as pessoas, a realidade concreta; a realidade virtual é o instrumento de expressão perfeita das distâncias de que se constitui o capitalismo. Quanto às “falsas esperanças”, ora o que tem sido a modernidade senão o oferecimento de falsas esperanças? Onde estão a liberdade, a igualdade e a fraternidade, prometidas há mais de duzentos anos pela Revolução Francesa? A teatralização da “política do espetáculo”
[x] é o que faz com que “as vitórias (embora parciais) sobre o racismo e o machismo representadas pelas campanhas de Obama e Hillary Clinton não são vitórias sobre o neoliberalismo, e sim do neoliberalismo: vitórias de um compromisso com a justiça que não faz nenhuma crítica à desigualdade, desde que seus beneficiários sejam racial e socialmente diversificados.”[xi] Estas palavras de Walter Benn Michaels (professor da Universidade de Illinois) resumem a ópera: os liberais estadunidenses – e, dentre eles, Obama – simulam insurgência ao falar em racismo e machismo, quando isso, na verdade, representa uma esquiva para não falar em capitalismo. O tabu capitalista, segundo Michaels, é observável tanto entre os neoliberais de direita (Mccain) quanto entre os neoliberais de esquerda (Obama): “Seja porque acreditam que a desigualdade é aceitável, desde que não decorra da discriminação (caso dos neoliberais de direita), seja porque acham que lutar contra a desigualdade racial e sexual constitui um passo na direção da igualdade real (caso dos neoliberais de esquerda).”[xii] As ilusões do “Yes, we can” multicultural vão de par com aquelas nutridas pelos “pais fundadores” (constantemente referidos por Obama) de que seria possível um “capitalismo emancipador”.
À frase desafiadora proferida por Obama no discurso de vitória – “se alguém duvidava da força da nossa democracia” – corresponde o mundo dos símbolos. A maquinaria capitalista – pasteurizando a tudo e todos, prendendo-se ao oco dos símbolos – se moldou às propostas multiculturais, admitindo que “o homem negro”, o metalúrgico, a mulher, o indígena, cheguem, por meio de eleições, à presidência dos países; o máximo que pode ocorrer é que os símbolos se mostrem como são, ocos. Os sujeitos do multiculturalismo (a mulher, o negro, o homossexual, o estrangeiro, o indígena, etc.) são apenas distanciamentos do humano genérico convenientes ao capitalismo (o establishment está sempre disposto a “ouvir suas demandas”, destituindo-as de força, como já o dissera, pertinentemente, Zizek), bem como a massa, a “Geração Harry Potter”.

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[i] Chávez, em seus discursos, têm se referido a Obama como “o homem negro”; após a vitória do candidato democrata nas eleições estadunidenses de 4 de novembro de 2008, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, afirmou, em nota à imprensa, seu desejo de “conversar com o homem negro na Casa Branca”.
[ii] “Sim, nós podemos”.
[iii] A esse respeito, confira texto de Humberto Alencar e Bernardo Joffily, publicado no Portal Vermelho – http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=46274.
[iv] Segundo Gilson Caroni Filho (da Agência Carta Maior), além do “ceticismo fatalista”, há entre os intérpretes da vitória de Obama os partidários do “triunfalismo pueril”, vertente que ignora os “enormes desafios que esperam o próximo ocupante da Casa Branca”. Toda a contundência da crítica se esvai quando se percebe que o próprio Gilson Caroni Filho se prende às brumas de um Obama de esquerda (uma esquerda multicultural, em oposição à qual a direita já se articularia para as eleições parlamentares de 2010), cujo “elemento central” de sua vitória é “justamente o reconhecimento dos movimentos sociais como atores de enorme importância para a revitalização da esfera pública”. Nada mais pueril do que isso. Confira o texto referido em http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4024, acesso realizado em 08 nov. 2008.
[v] Novamente citamos o texto da nota anterior: Gilson Caroni cita o historiador Nicolau Sevcenko para corroborar sua posição – “Há oito anos, o historiador Nicolau Sevcenko afirmava que ‘esses movimentos que a gente viu tomar as ruas de uma maneira teatral, fortemente simbólica, em Seattle, Toronto, Washington e Praga, são a projeção na praça pública desse grande nexo de pessoas de todo o mundo que convergem para uma crítica que pretende recolocar o homem no centro do processo histórico’. As palavras de Sevcenko eram uma correta reflexão sobre o lugar da política no contexto da globalização neoliberal.”
[vi] Basta ver CARONI FILHO, Gilson. Obama, lições de uma vitória. Disponível em http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4024.
[vii] LEFEBRE, Henri. Lógica formal/ lógica dialética. (Trad. Carlos Nelson Coutinho). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 132.
[viii] Confira HOLLOWAY, John. Mudar o mundo sem tomar o poder: sobre os significados da revolução hoje. (Trad. Emir Sader). São Paulo: Viramundo, 2003, p. 26.
[ix] ZͮIZͮEK, Slavoj (org). Às portas da revolução: escritos de Lenin de 1917. (Trad. dos textos de Slavoj Zͮizͮek, Luiz Bernardo Pericás e Fabrizio Rigout; tradução dos textos de Lenin, Daniela Jinkings). São Paulo: Boitempo, 2005, p. 304.
[x] Não esqueçamos da sempre atual tese de Debord, segundo a qual “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.” DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Cap. I, tese 4.
[xi] MICHAELS, Walter Benn. Contra a diversidade, (Trad. de Ivo Korytowski), piauí, n. 26, São Paulo, Ed. Alvinegra, nov. 2008, p. 56.
[xii] MICHAELS, W. B. Op. cit., p. 57.

3 comentários:

marginário disse...

Está aí um exemplo genuíno de jornalismo filosófico: parabéns!

floema disse...

A Sra. Desconfiada também flana por aqui...

Khôra disse...

Marechá!!! Não sabia que Monsieur também andava recluso nos campos magnéticos da rede...
Parabéns pelo blog!!!
Quando voltar das intempéries do processo anedótico que toma posto in my head, devo aportar dans le coin du monde, proprio qui, nel tempo oscuro di nostra não-língua-não-compartilhada.
Saravá!!!
Le Malade